"A Cultura do Slow Down".
Elsie Lessa

GENTE
Somos uma geração que come de pé, que trocou os doces ritos que cercavam o nobre ato de alimentar-se, por uma apressada ingestão de calorias.
Já não comemos, abastecemo-nos como um veículo, como um automóvel encostado à sua bomba. Trocamos as velhas salas de jantar por mesas de abas, que se improvisam, às pressas, de um consolo exíguo encostado a uma parede. E o que sabe de um lar uma criança que não foi chamada, na doçura da tarde, do fundo de um quintal, para interromper as correrias, lavar mal-e-mal as mãos e vir sentar-se à mesas postas para o lanche, com mansas senhoras gordas que vieram visitar a mamãe? É a hora dos quitutes, das ingênuas vaidades doceiras, da exibição das velhas receitas, copiadas em letra bonita de um caderno ornado de cromos.
Somos uma geração que perdeu o privilégio de não fazer nada, aquele doce não-fazer-nada que é a mansa hora do repouso, o embalo da rede na frescura de uma varanda, a quietude ensolarada de um pomar em que o sono da tarde nos pegou de repente, a hora de armar brinquedos para as crianças, das visitas que chegam sem se fazer anunciar, pois na certa estaremos em casa para uma conversa despreocupada e sem objetivo.
Somos uma geração de mulheres que saem demais de casa, para trabalhar ou para se divertir, e perde metade da vida indo ou vindo para não se sabe onde, fazendo fila para comprar, tomar condução ou assistir a um cinema. Perdemos o abençoado tempo de perder tempo, de não fazer nada, a única hora em que a gente se sente viver.
O mais é canseira e aflição de espírito.

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Elsie Lessa (São Paulo, 1912 — 2000) foi uma jornalista e cronista brasileira.
De 1952 a 2000, quando faleceu aos 88 anos, Elsie Lessa escreveu e publicou, sem interrupção, no jornal O Globo. Nenhum outro escritor teve um espaço por tanto tempo nas páginas do jornal.
Na juventude, embora natural de São Paulo, foi considerada uma das duas mais belas mulheres do Rio de Janeiro, a outra era Adalgisa Nery. O cronista Rubem Braga a seguiu pelas ruas de São Paulo, fascinado pela sua beleza e graça.
Entrou em O Globo como repórter, em 1946. Sobre ela, o escritor Ruy Castro disse: "Elsie tem seu lugar ao lado dos maiores cronistas da língua portuguesa, como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino".
Era neta do escritor e gramático Júlio Ribeiro, membro da Academia Brasileira de Letras, e foi casada com o escritor e também imortal Orígenes Lessa, com quem teve um filho, o jornalista, cronista e escritor Ivan Lessa. Foi casada, pela segunda vez, com o jornalista e escritor Ivan Pedro de Martins.